Jaula para que(m)?
Não é exatamente novidade que medidas radicais sejam tomadas quando há uma situação que parece fugir do controle – ainda mais no que diz respeito às autoridades brasileiras. E, em um país em que balas de borracha, gás de pimenta e cassetetes vão de encontro a corpos que personificam ideais, estranho seria se a criminalização coletiva não acontecesse também no âmbito do futebol. Sim, é claro que ela existe já há bastante tempo, na relação indissociável que se faz das torcidas organizadas com a criminalidade, em uma generalização que afirma a crença maniqueísta de uma sociedade que adora fomentar sua bipolaridade – nos dois sentidos que a palavra aqui pode ter.
Por isso, em nada nos surpreende a decisão do MP, com a anuência da FERJ e dos clubes, dentre os quais o nosso Flamengo, de colocar grades separando as torcidas organizadas do restante dos torcedores “comuns” no ex-Maracanã. É mais uma prova cabal da inabilidade das autoridades de lidar com um problema em sua própria natureza: trata-se de aplicar uma punição desmedida em vez de se preocupar em evitar que as ações de desordem que a motivam voltem a se repetir. É considerar o povo como culpado por estragar o espetáculo que os abastados pagaram muito caro para ver e aplaudir, esquecendo-se de que aquele estádio, antes de ser arena, era dele. Era onde o povo vibrava, emocionava-se, encontrava-se em credo e fé. Mas a mais indesejada das gentes precisava ser expulsa. A luta de classes precisava ecoar ali.
Primeiro, tiraram o seu espaço popular mais famoso, a geral. Depois, pela moeda, foram excluindo-o aos poucos. Os tolos acharam que não teria reação. Mas se esqueceram de que paixões são incontroláveis. E se o espaço para que ela se manifeste não é dado por direito, acaba sendo buscado pela força. Porém, no lugar de se repensar esse afastamento, melhor parece ser cercar o seu povo com grades. Transformar a arquibancada na metonímia do desejo íntimo de uma parcela detentora de bens materiais que anseia por deixar os “diferentes” sempre longe de suas vistas. Superlotar a arquibancada-cela como fazemos com os pretos e pobres espalhados por todo esse Brasil, privados de suas alegrias pela ganância de quem controla o dinheiro e, por isso, sente-se no direito de controlar também o amor, a alegria, a diversão. Criar mais barreiras. Criar mais segregação. Desdemocratizar o espaço público uma vez mais, em um eterno “eles” contra “nós”.
Acreditamos que a medida do MP é parte de um pensamento arcaico que remete a sistemas punitivos que se valem da segregação, e não da inserção, para estabelecer uma suposta ordem, com sociedades em que, como afirmou o pensador francês Michel Foucault, “os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa “economia política” do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos “suaves” de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão.”
Nesse sentido, o Flamengo da Gente repudia veementemente mais esse ataque à natureza popular do futebol brasileiro. Jamais aceitaremos que o estádio, o microcosmo mais democrático de nossa sociedade, transforme-se em um espaço de segregação e discriminação. Se seguirmos nessa escalada, em breve as tais arenas modernas poderão personificar as da Roma antiga, com os pobres digladiando-se no centro enquanto os ricos aplaudem e condenam à morte com um simples gesto de polegar.